segunda-feira, 5 de abril de 2010

Um encontro com Martinho



Fui assistir Martinho da Vila e sua filha Maíra na Sala Cecília Meireles semana retrasada e ainda guardo na memória o significado daquele encontro pra mim. Eu havia estado no Festival de Cinema do Rio, aonde tive a honra de assistir, ao lado dele e de toda a família, a um belo documentário sobre sua vida. Descubro um pouco desse grande artista todos os dias.

Comprei ingresso na arquibancada, mas a sala estava vazia, ninguém conhecia Maíra. Consegui lugar na primeira fila e desfrutei de perto de um encontro raro numa tarde de domingo. Todo de branco, Martinho rege um show intimista regado com a velha e conhecida malemolência que lhe deu tanto estilo. Acompanhada do pandeiro, sua fala se confunde com canções, histórias e lembranças que brotam do peito aberto e sorriso largo, olhando nos olhos da gente e se divertindo.

Uma mistura de histórias e canções, palavras com notas musicais, faz daquele show a sua vida. O pandeiro, companheiro de estribilho, é substituido aos poucos pelo piano de Maíra Freitas, a quem ele oferece o palco e a companhia. O dueto pai e filha e a  mãe na platéia faz da última canção o eterno estribilho: ex-amor gostaria que tu soubesses o quanto que eu sofri ao ter que me afastar de ti...

A grande surpresa da noite é Maíra, a nova herdeira do som e do improviso. Também compõe, conta histórias e canta com estilo, fazendo sorrir o pai envaidecido. Nosso grande poeta negro além de manter o fôlego e o ritmo, transmite seu talento com rara maestria. É na simplicidade da voz macia de Maíra que renasce o talento do eterno menino, lambedor de crias.

Eliane Martins

sábado, 20 de março de 2010

Minha primeira colagem




Novamente de volta, tentando colocar as postagens em dia... sem muita regra, ritmo ou definição de rotina.

Hoje é sábado e consegui sair pra fazer compras, ver duas exposições, ir ao teatro e ainda esticar numa pista de dança com os amigos. Ufa! são quatro da manhã e eu nem acredito que estou viva!

As compras foram frustradas, o banco cometeu um engano e bloqueou meu cartão, ai que vergonha quanto acontece isso! Foi o sistema, uma hora depois eles me ligam de um número desconhecido e falam de um problema sistêmico. Cercada de palavreados bonitos e mil pedidos de desculpas, concluí que não devia gastar aquela grana, o sistema pressentiu isso. Não precisava comprar tantas coisas em um só dia.

Fui ao teatro retirar meu ingresso antecipado, a Bárbara elogiou o espetáculo, não queria correr o risco de perder o grupo Tapa em seu penúltimo dia no Rio. E sabia que com a força da Bárbara, se eu deixasse pra cima da hora, seria impossível.

Enquanto aguardava o espetáculo me distraí com duas curiosas exposições. Uma no Museu da Justiça Federal reuniu um grupo de deficientes físicos. Essa mistura de arte com filantropia parece esquisita, mas apesar disso alguns trabalhos são belíssimos, especialmente o do curador. Ele brinca com a aquarela e só por ele já valeria a visita.

Algumas esculturas de ferro, feitas com parafusos e outros objetos conhecidos, davam vida a personagens como Dom Quixote e Cartola, além de alguns trabalhos com argila... Pra finalizar, uma exposição de fotografia no andar de cima e o passeio pelos arredores do museu, transformado em mais um presente pra cidade. Lindo!

De volta ao museu da CEF, na Barroso, me perdi na Pintura em Pânico logo na entrada, só conseguindo largar a oficina de colagem ao me lembrar da fila no andar de cima. Mas vou voltar pra fazer mais colagens, adorei o exercício.

Enfim o espetáculo, um bom teatro como há algum tempo não via. "O Ensaio" reúne bons atores, uma direção honesta, cenário cuidadoso e limpo, além de um belo figurino. Não sou Bárbara Eliodora e nem li o que ela escreveu. Mas saí do teatro feliz por ter ido.

Pra completar a noite uma pista e dança e eu acreditando que valeria a pena esticar mais um pouquinho. Se não fosse pela companhia dos amigos, da noite linda, da cerveja gelada de algumas caras bonitas, eu choraria por meus pés doídos. Depois de uma hora e meia do lado de fora, na fila, enfrentei um lugar superlotado e prometi pra mim mesma: Maracangalha, nunca mais! Nem morta eu repito esse equívoco.

A cidade oferece diversidades e eu não me canso de esbarrar com gringos em todos os lugares. Uma babel de mexicanos, portugueses, chilenos e franceses na fila pra comprar bebidas foi o momento mais divertido. Porque de resto, muito pisão no pé e muita fila.

Um taxista com sotaque da roça que não sabia direito o caminho me deixou na porta de casa e esperou que eu entrasse pra dar partida. A feira da Glória começa a ser montada, já é quase domingo. Amanhã vou ver o filme do Eric Glauber, quem sabe eu escrevo mais um pouquinho?

Eliane Martins

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Noites Cariocas, um minuto de felicidade




Uma feliz surpresa encerrou meu domingo de carioca, orgulhosa de pertencer a uma cidade que, de tão maravilhosa, vez por outra põe de lado as suas mazelas e comemora. Um encontro musical dos mais raros reuniu no mesmo palco uma estirpe rara de músicos e cantores, nos presenteando com arranjos inéditos e inesquecíveis.

Deixando de lado os que não saberia citar, destaco a presença de Yamandu Costa ao lado de Hamilton de Holanda, um encontro inesquecível. Sem falar de Roberta Sá, que com sua voz estonteante fez juz ao nosso mestre das cordas, num duo de arrepiar! Pra animar a festa, Mart'nália com sua ginga e irreverência, quebra o tom cerimonioso do encontro, fazendo o povo levantar.

Elza Soares, trazida pelos braços pelo anfitrião Pedro Luis, encerra a festa com sua voz rascante e ares de imortalidade. O pé torcido, que a obriga a permanecer sentada numa cadeira de rainha, não diminui a força com que conduz o samba, até sair de cena com seu microfone ligado, impertinente a cantar por detrás do palco.

Num espaço lindo à beira mar - que exibia no fundo o outro lado da cidade e a ponte que a separa - se manteve cercado pela brisa revitalizante da noite, restauradora de esperanças. Ao som de Cidade Maravilhosa nos despedimos, com a felicidade que deixa na memória um gosto de coisa restaurada.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Sopros de vida - o primeiro espetáculo do ano





A nova temporada de teatro 2010, no CCBB, nos dá de presente Nathalia Timberg e Rosamaria Murtinho numa montagem requintada, cuja parceria torna impossível distinguir qual das duas atrizes é mais talentosa. Com vigor, jovialidade e intenso brilho dramático, o espetáculo traz para a cena o velho jogo de rivalidade entre amante e esposa. Explorado pela direção com sutileza e habilidade, o texto revira ao avesso aspectos comoventes do mundo feminino, presentes em uma geração da qual ambas fazem parte.

O duelo das personagens - uma bela mistura de conivência e cumplicidade, confundida com uma sutil onda de hostilidade - dá contorno à figura masculina imaginária, conquistador, amante e companheiro, com todas as contradições que lhe cabem. Em torno do recente abandono e da solidão inevitável, ambas tecem aspectos singulares de suas vidas, escolhas cujo destino trazem de volta questões antigas, jamais ultrapassadas. Se casar e ter filhos não aproxima a mulher do destino invejado, o lugar reservado para a amante não é menos trágico. É no "destrinchamento" do texto que a direção do espetáculo nos permite pensar os fragmentos, rir de chistes arrojados e refletir sobre o sentido da vida, enquanto nos proporciona planejados intervalos.

Não há muito o que dizer e os segredos do passado não parecem tão relevantes como deveriam ser de fato. O que era imprescindível tornou-se vulgar e o esquecimento transformou-se em necessidade. Duas mulheres envelhecem, na vida e no palco. Enquanto o personagem masculino se diverte do outro lado do mapa, com a jovialidade americana e os velhos clichês embutidos nas mesmas piadas.

Com tudo o que assisti de belo nessa noite, uma pergunta ainda me cabe: qual é o sentido de montar textos que falam de um outro mundo, embora a mulher seja a mesma em qualquer parte? Talvez um diálogo entre Clarice Lispector e Adélia Prado, falando da solidão como o destino de todas as mulheres, possa nos ensinar algo mais sobre a faca e o queijo: a fome como saída para a coisa amarga.

sábado, 16 de janeiro de 2010

MARIGHELLA, o filme.






Ontem fui assistir ao filme "Marighella, o retrato falado do guerrilheiro", promovido pelo Grupo Tortura Nunca Mais - RJ, com a presença do diretor Sylvio Tendler, o filho de Marighella e outros militantes da época. A exibição aconteceu na Caixa Cultural da Almirante Barroso, fazendo parte de uma sequência de eventos que incluiam a exposição MARIGHELLA e homenagens ao "Combatentes tombados durante a ditadura iniciada com o golpe militar de 1964".

Bem antes de começar a exibição, a distribuição das senhas seguia critérios pouco convencionais, pra não dizer constrangedores. Enquanto a fila crescia o produtor do evento rodava pelo saguão distribuindo-as para os seus amigos. Minha sorte foi receber de quebra o cumprimento de um militante das antigas e nesta hora abocanhar o famigerado papelzinho cor de rosa, pegando carona com o desconhecido galante que pelo salão circulava. Uma menina que estava do meu lado e não teve a mesma iniciativa, ficou do lado de fora da festa por não saber responder rápido: você vai participar do debate?

A chuva que caía do lado de fora não impedia que aos poucos fosse se formando um aglomerado de pessoas em torno da sala de exibição, enquanto o produtor tentava ser "justo" com o resto das senhas que ainda retinha em suas mãos. Alguém decide sair e dar lugar a uma idosa, outros comentam acerca da falta de organização, até que finalmente a exibição tem início, com uma hora de atraso e um resto de burburinho e excitação no ar.

A narrativa segue no estilo tendleriano, cuja sensibilidade se expressa na escuta atenta e cuidadosa de diferentes relatos. Mariguella, o personagem que interessa ao olhar do cineasta, recebe um colorido especial dos amigos e parentes, tendo sua intimidade explorada em pequenos detalhes - a peruca, o óculos, as sandálias - que o tornam parte da história de mais um brasileiro baiano, homem simples, irreverente, de extrema sensibilidade e coragem.

Após o filme, um debate seguido de homenagens tem como foco principal o status de ser parente ou amigo de um torturado. Uma criança pede a palavra e surpreende com a novidade que todos já sabem: de que a tortura ainda existe, sendo praticada hoje contra os pobres e favelados. A classe média - que um dia foi esquerda - assume hoje uma posição de direita e sua luta por reparo não inclui o povo massacrado. Enquanto existirem privilégios, senhas e lugares marcados, a discussão que interessa ao povo permanecerá esquecida e faltarão lugares.

Ao sair do cinema tentei ir ao banheiro e fui informada pelo segurança que o prédio estava sendo evacuado. No dia seguinte fiquei sabendo de uma ameaça de bomba no local e pensei: quase que eu morro sem nem saber de que lado estava. Como filha de militar que odiava os comunistas e me ensinava sempre a ter cuidado com os "vermelhos", eu pensava: esse encontro não é pra mim, não serei homenageada. Ainda me restam outros filmes e outros encontros pra me sentir incluida nesta luta, mesmo sem o "pedigree" necessário.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A reinvenção de Caim



A guerra secular entre criador e criatura é o tema retomado por Saramago, com a poesia de um herege que não se intimida com a verdade. A sobrevivência do humano frente à lógica do divino é descontruída pelo personagem Caim, ora Abel, ora inocente, ora culpado. É na desorientação definitiva dos desígnios absolutos do divino que a história cria asas.

Se existe uma palavra solene e pomposa, aparentemente destinada a grandes coisas, quem decide o momento de sua solenidade é o poeta personagem. A palavra, cuja conotação erótica produz a intimidade com a mulher amada, é a mesma que lhe oferece um sinal na testa, uma marca. E que lhe faz seguir errante, sem saber ao certo o final da estrada.

A atemporalidade, como truque do autor, nos faz passear pela história sagrada com uma irreverência inescrupulosa. Recolocando na boca de Caim a escrupulosidade da criatura por Deus condenada. A armadilha que nos priva de outros sentidos é retirada das antigas lendas, cujas frestas o autor escava. É Caim quem salva Isaque da insanidade de Abraão, questiona Deus acerca da destruição de uma cidade, se espanta com a passividade de Jó e por fim, entra na arca e viaja com Noé e sua prole.

O assassinato do irmão e a vida errante, como dono de uma inconfundível e enigmática marca, transformam Caim em um homem inconformado, um outro personagem. Se tudo cabe em um romance, "é curioso", nos diz ele na boca do narrador desconhecido "que as pessoas falem tão ligeiramente do futuro, como se estivesse em seu poder afastá-lo ou aproximá-lo de acordo com as conveniências e necessidades..." No romance de Saramago, é o texto sagrado que sofre mutações imprevisíveis, alterando os planos do Criador e subvertendo a verdade. A criatura reage.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Um casal tijucano





Hoje me dei de presente o Caim do Saramago, enquanto aguardava o horário para assistir ao filme Praça Saens Peña, encerrando minhas noites de festividades de fim de ano. Sentei-me ao lado de um jovem casal, que trocava impressões acerca da nova empregada enquanto comia pipoca compulsivamente. Sem saber se o que mais me irritava era o barulho da pipoca ou o tom da conversa, tentei mudar de lugar, para descobrir em seguida que cadeiras numeradas era mais um dilema a ser enfrentado. Os donos das cadeiras com seus bilhetes numerados exigiam o lugar marcado.

De volta ao lugar de antes, aguardei silenciosa os trailers e comentários, torcendo para que o balde de pipoca acabasse logo e a última gota de coca-cola encerrasse com mais um típico barulho insuportável. Para minha sorte Chico Diaz em poucos minutos tomou conta da tela, roubando minha atenção com uma hora e meia de um espetáculo impecável. Não só ele, mas todo o elenco e direção me fizeram esquecer a obrigatoriedade de um lugar marcado.

Meu arraigado preconceito tijucano aos poucos deu lugar à um trabalho de convencimento raro, pela preparação de um roteiro limpo, honesto e dedicado. Ser tijucano deixou de ser um defeito grave, mesmo na construção de um personagem corno e aparentemente acovardado. Cujo contraste com o futuro morador da Zona Sul, com belos ares de antenado, não deixa dúvidas para que lado a câmera pretende empreender o seu melhor talhe.

Sem deixar de lado a pesquisa histórica do roteiro e sua conexão com os conflitos atuais, o ponto alto que o filme promove é a entrevista com Aldir Blanc, cujos contornos merecem ser relembrados. O que existe de incomum no bairro, nos revela o célebre compositor tijucano, entre outros citados, é a relação da classe média com o resto da população pobre, cuja convivência é reforçada pelo samba e pelas relações de troca permanente com as tradicionais escolas.

O casal ao meu lado tece seu comentário a la Boris Casoy, assegurando ao término da película que ela não terá mais do que dez cópias. Meu preconceito mudou de bairro, é na Zona Sul que o morador nao pode descer de madrugada pra comer cachorro quente e conversar com favelado. É na Zona Sul que a empregada doméstica se reduz a um bom ou mau negócio. É na Zona Sul que as pessoas perdem a sensibilidade e vão ao cinema somente pra não perder o hábito.

O próximo filme que o casal vai assistir é francês. Durante o trailer ele promete que fará isso por ela, recebendo de volta um beijo de muito obrigado. Espero que da próxima vez eu dê mais sorte e sente do lado de um casal tijucano menos descolado. Enquanto isso, vou dormir com Saramago.

Eliane Martins